Weydson — Há uma geração de poetas, posterior à sua, para quem os referenciais literários são completamente diversos dos chamados "luminares" da poesia moderna brasileira. Fale um pouco sobre isso.
Gullar — Na verdade, é uma geração que absorveu uma certa desordem e deu a ela uma ordem que é diferente da nossa. Para eles, Quintana, por exemplo, tem uma importância muito maior do que Drummond e outros que foram os orientadores, os "luminares" da nossa geração. O Quintana tem mesmo algo muito pessoal, é um poeta muito interativo, que tem muito humor, ele é diferente... E é por isso que eu também acho importante abrir a discussão, torná-la um pouco mais aberta a coisas diferentes da gente.
Weydson — Numa entrevista recente, você disse que escreve esporadicamente, e só quando tem "algo novo a dizer". Você acha que o que difere o bom poeta dos demais é esse discernimento na hora de escrever?
Gullar — Sim, claro. Eu não estou querendo estabelecer um "democratismo" que inclui tudo. Mas eu acho que de um determinado patamar em diante todos são poetas, quer dizer, quando você chega no patamar de Vinicius, Jorge de Lima Murilo Mendes, Drummond, todos são poetas... Eu me lembro quando comecei a ler Murilo Mendes — eu era garoto em São Luiz — Mundo Enigma, Poesia Liberdade, eu achei aquilo tudo deslumbrante. Eu deitava na minha rede, à tarde, e punha do lado uma pilha de livros. Todos os dias eu lia Manuel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Eu adorava todos eles. Eu não estabelecia aquela coisa de que um era melhor de que o outro. Quando eu lia Bandeira, eu gostava daquela emoção contida, pura; depois eu pegava o maluco do Murilo Mendes e lia aquelas coisas: "as nuvens jogam boxe"..., depois ia para Drummond, aquele troço mais denso... Eu sempre procurei passar pros jovens, depois, quando eu já estava mais experimentado, essa idéia da pluralidade, sempre a idéia da pluralidade.
Weydson — E nessa época de S. Luiz, ainda dentro dessa idéia da pluralidade, você chegou também a conhecer poetas estrangeiros?
Gullar — Sim, claro. Alguns eu já havia tido oportunidade de conhecer. Foi aí que eu comecei a aprender francês por minha conta. Pegava umas traduções. Um dia um amigo me mandou as Elegias de Duíno, e eu adorei o Rilke. Agradeci com uma carta entusiasmada dizendo "que poeta maravilhoso", daí eu saía atrás de outros livros desse poeta. E assim, nessa procura, eu fui conhecendo Valéry, Rimbaud, Mallarmé.
Weydson — Que poeta, ou poetas, você recorda de ter, nessa época, mexido realmente com você?
Gullar — Na verdade, não foi um ou dois. Alguns poetas me revelaram o que era a poesia. Porque o fundamental é saber "o que é a poesia". Você nunca chegará a Teresina se não souber pra que lado fica Teresina. Eu não digo que a poesia seja uma coisa definível, mas você tem de saber o que é isto: "aonde eu quero chegar"; ou seja, esse "aonde eu quero chegar" tem de existir. Eu me lembro quando li Fernando Pessoa, Drummond, Valéry, e alguns versos me marcaram ao me mostrar o que era a poesia, como quando Valéry dizia: "Beau Ciel, vrai ciel, regardez-moi, qui change". Isso não é apenas uma idéia, mas a sua colocação diante da realidade...
Weydson — Então a poesia, como a arte em geral, é uma forma de fugir da realidade?
Gullar — Eu não diria que é uma forma de fuga, porque ao mesmo tempo ela procura tomar a vida possível. Ela não quer sair da vida. O homem não faz poesia para sair da vida, ele faz poesia para ter coragem de viver. Além disso, há o fato de que o homem nasce pra morrer. Então, nada tem sentido. E por isso a religião existe, porque ela é a resposta para isso, porque ninguém agüenta...
Weydson — Você tem religião?
Gullar — Não, infelizmente.
Weydson — Por que "infelizmente" ?
Gullar — Porque é bom ter religião. A religião é que alivia você desse pesadelo de que o cara nasce pra morrer. Entremente, você ama, faz poesia, se diverte, faz o que quiser. Agora, numa certa altura da sua vida, quando você leva uma porção de cacetadas é que a morte passa a existir - porque no começo a morte é apenas ficção: você sabe que se morre, mas você não pensa que você vai morrer — mas no momento que ela passa a existir, no momento que morre seu filho, aí é verdade... Na hora que morre o seu amigo querido, aquele que lutou com você, que era seu companheiro (ou sua companheira) e que não existe mais, aí...
Weydson — Apesar de dizer que a morte era um ficção, em toda sua vida — pela própria condição de intelectual contestador, poeta, pensador, em épocas de ditaduras e regimes totalitários — você esteve sempre no limite do risco de morte, ou muito próximo desse limite...
Gullar — A morte é um tema permanente em minha poesia, e eu sempre achei insuportável ter que morrer. A minha poesia está cheia disso, dessa luta com a morte. Mas, hoje, olhando bem, eu vejo que aquilo era brincadeira. Porque eu nunca tinha sentido de fato a morte, eu nunca a tinha palpado.
Weydson - É mais fácil, então, escrever sobre a morte quando não a sentimos tão próxima?
Gullar — Até o amigo, ela ainda é suportável; o negócio é quando você perde um filho... Porque no fundo, esse é o processo da própria vida. E talvez o homem seja constituído de maneira a não conhecer a realidade toda de uma vez, porque, assim, acho que ele não agüentava...
Weydson — Isto quer dizer que o conhecimento da "verdade" seria insuportável?
Gullar - Mas a verdade absoluta não existe...
Weydson — Então como funciona, a seu ver, o processo da criação de tudo?
Gullar — Eu sou uma pessoa perplexa diante do absurdo da existência. Quando eu ouço na televisão que todo o sistema solar é algo em torno de O,2% da massa do sol e que o sol é uma migalha no que se conhece do universo, é uma loucura... (risos) Então o que é meu gatinho (mostrando o seu gato no tapete) dentro disso tudo? Essa idéia de que houve um tempo em que era o Nada é um absurdo, não é possível imaginar que algum dia era Nada... mas é fascinante imaginar que cada um de nós faça parte dessa coisa extraordinária que é o universo.
Weydson — Você acha que os críticos dão excessiva importância à sua poesia política ?
Gullar — A fase estritamente política de minha poesia é muito reduzida, e o número de poemas realmente políticos é insignificante. Mas os críticos, de repente começam a me colocar como se eu fosse um poeta político porque, como cidadão, fui realmente muito atuante. Eles confundem a coisa. A mesma coisa é o concretismo na minha poesia. Esse é um período que dura na verdade poucos anos, e as obras que escrevi aí são de quantidade reduzida. E se eu tivesse insistido naquele caminho eu jamais teria escrito o Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Na Vertigem do Dia, coisa que me gratificam porque eu sei que representam uma experiência de vida e emoção nas pessoas. E eu sei disso porque as pessoas me dão retorno.
Weydson — Sempre que você fala "Academia" eu sinto algo distante, ironicamente distante. Você nunca pretendeu, ou não pretende, entrar pra Academia ?
Gullar — Eu acho que Academia e Poesia são incompatíveis. Eu não tenho nada contra as Academias, mas acho realmente que a cultura tende a se institucionalizar. É um absurdo imaginar a cultura como mera manifestação individual ou sempre marginal. Isto não tem saída. Pelo próprio processo da sociedade a tendência da cultura é se institucionalizar e nisso não há só perdas, há ganhos. Isto é uma coisa. Agora, eu, pessoalmente, com o meu temperamento, e com a minha maneira de ver a poesia, eu me sentiria mal, seria como se eu estivesse me traindo.
Weydson — O que aconteceu entre Josué Montello e Antônio Houaiss, pela sucessão da presidência lhe incomoda?
Gullar — Não, porque eu acho que aquilo é próprio da Academia. Nada mais natural, na Academia, do que isso. Porque, afinal, se trata de uma entidade onde está se disputando o poder. É um aparato social que como todo aparato social tem lá suas coisas.
Weydson — Mas como você vê isso numa Academia de Letras?
Gullar — O que eu acho é que a Academia é uma instituição anacrônica. Primeiro o cara se vestir de fardão e espada, cara, da Academia tem minhas amigas, pessoas que eu admiro como grandes escritores. Tem muitos, dentro da Academia, de modo que essa minha crítica não vai em detrimento deles. Agora, que a Academia é anacrônica, é. Não serve pra nada. Para que serve a Academia? A Academia não tem função alguma. É uma instituição meramente consagratória. Mas aí ela peca. Porque ela consagra, muitas vezes, quem não tem razão de ser consagrado.
Weydson — Mas qual a diferença entre a Academia e o Conselho Federal de Cultura, do qual você faz parte ?
Gullar — O "Conselho" é outra inutilidade. Veja vem, o Conselho não "aconselha"! Pode até aconselhar, mas o ministro não ouve! Então, serve para quê ? Não serve pra nada.
Weydson — Mas isso não depende de que o Ministro esteja à frente do Ministério da Cultura?
Gullar — Não, não depende. Isto é uma outra coisa. Esse ministro aí está desrespeitando as pessoas. Porque o Conselho existe institucionalmente. Dentro da estrutura do Ministério. O Conselho existe e ele não pode desconhecer isso.
Weydson — E o que seria preciso para resolver o problema?
Gullar — O ministro teria que abrir uma discussão com o Conselho para saber que destino dar àquilo. Uma reestruturação. De que maneira integrá-lo ao Ministério de modo eficaz. Isso é o que tinha que ser, e não fazer de conta que não existe.
Weydson — E por quê, então, o Conselho é uma "inutilidade"?
Gullar - Pelo seguinte: Quando o Conselho foi criado não existia o Ministério da Cultura. O primeiro Conselho criado dentro do Ministério da Educação exercia funções que hoje são do Ministério da Cultura, então, no momento que o gerou o pinto e o pinto saiu do ovo — quer dizer, o Ministério da Cultural saiu do Conselho de Cultura, e nasceu o Ministério, o Conselho deixou de existir; ele é uma "casca", o pinto já está "cantando de galo".
Weydson — Mas ainda assim, o Conselho não seria um fórum mais democrático para gerir a cultura do que um Ministério ?
Gullar — Mas o problema é que no momento em que você cria um Ministério da Cultura e há um Ministro, das duas uma, ou o Ministro dirige o Ministério ou o Conselho.
Weydson — Eu sei que até pouco tempo você participava ativamente do carnaval de rua do Rio de janeiro, saindo inclusive à frente da Banda de Ipanema, como um dos mais animados foliões. Você ainda participa do Carnaval de rua?
Gullar — Eu sempre tive muita ligação com a música popular, e quando me casei com a Thereza (minha falecida esposa) ela era uma pessoa ligadíssima em música popular, o que era uma de nossas muitas afinidades. Como ela era carioca, desde que nós nos conhecemos ela se interessava muito pelos desfiles de carnaval. Nessa época — logo que cheguei ao Rio — eu tinha visto apenas um desfile, sozinho, trepado numa caixa de querosene lá na avenida. A partir daí, nós começamos a ir todos os anos. No início era na Avenida Presidente Vargas, em 54, 55, por aí. Depois nós arrastamos pelo nosso itinerário o Vianinha, o Paulo Pontes, o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) também, e passamos a freqüentar e participar de todos os desfiles. Mais tarde, a Thereza passou até a desfilar no Salgueiro.
Weydson — E você?
Gullar — Na verdade, eu nunca quis desfilar. Porque aí não combinava muito com a minha cabeça...
Weydson — E na Banda de Ipanema?
Gullar — Mas a banda era um bloco de sujos. Então saíamos em grupo, brincando e tomando cerveja. Mas depois a própria Banda de Ipanema virou uma bagunça e foi de certo modo tomada por um pessoal meio barra-pesada e começou a ser perigoso, porque de repente sumia teu relógio, etc. Por isso eu passei mais a olhar do que participar. Até dois anos atrás eu ainda fui...
Weydson — Você chegou a ter uma amizade próxima com Manuel Bandeira? Como era a sua relação com ele?
Gullar — Eu nunca me aproximei dos grandes poetas da época. Nem do Drummond. No entanto, com quem eu tive certa proximidade foi com o Murilo Mendes, mas porque ele era amigo do Mário Pedrosa, e dele eu me aproximei porque ele não era poeta, mas crítico de arte. Porque quando eu cheguei ao Rio eu procurava não os escritores, mas os artistas plásticos e os críticos, e especialmente o Mário Pedrosa. Como ele era muito amigo do Murilo Mendes, me levou à casa dele e eu me tomei amigo do Murilo Mendes. E fui várias vezes à casa dele. Agora, o Bandeira eu conheci porque eu trabalhava no jornal do Brasil e ele era colaborador do jornal. E o Bandeira era uma simpatia de pessoa. Murilo, que também era simpático, delicado, estabelecia uma ligação um pouco distante pelo temperamento dele. Já o Bandeira era uma pessoa afetuosa, e despretensiosa. Ele não tinha essa mística de gênio, imortal, não. Inclusive, na época, incluiu uma referência a mim naquele livro dele que faz um estudo da poesia brasileira e traz uma antologia. Ele incluiu um poema meu na então nova edição do livro em que é feita uma menção à Luta Corporal. E como ele sempre ia levar a colaboração dele no jornal a gente conversava, se encontrava na esquina. Ele sempre muito engraçado, muito irônico... Então nossa relação foi essa, de jornal...
Weydson — E com o Drummond?
Gullar — O Drummond era uma pessoa mais fechada. Com o tempo também nos conhecemos através de encontros ocasionais, no lançamento de livros dele, em enterros de amigos comuns... Evidentemente ele tinha conhecimento de minha poesia. Quando eu mandava um livro meu para ele, ele às vezes respondia com um bilhete, com um livro oferecido, sendo sempre muito cordial. Mas havia gente que ficava ligando pra ficar conversando no telefone. Como não sou muito de telefonar, nunca mantive esse tipo de relação com ele. No entanto, havia uma relação carinhosa e respeitosa entre nós. Eu o respeitando como um grande poeta, como um mestre, e ele sendo gentil comigo.
Weydson — Como você vê o momento literário no Brasil de hoje?
Gullar - É muito difícil fazer generalizações. Há momentos em que, não se sabe por que, se produz muita literatura de qualidade, e há momentos em que se produz quase nada. Ninguém sabe o que determina isso. Assim como em determinadas épocas a pintura e a música florescem e em outras não. Eu sempre cito como exemplo o final do século XIX na França. Nunca vi tanto pintor genial junto. É inacreditável: Manet, Monet, Pissaro, Renoir, Cézanne, e em seguida, Gauguin, Matisse, Rédon, e depois é Picasso, é Braque... É inacreditável quando você pega da segunda metade do Séc. XIX até os anos 20, a quantidade de artistas geniais. Mas de repente pára. Qual é o cara genial que tem lá agora? Ninguém. Esses fenômenos são inexplicáveis. É claro que, às vezes, o florescimento cultural depende do florescimento econômico. Por exemplo: Ouro Preto, antiga Vila Rica. Lá você teve o florescimento da escultura, da arquitetura, numa cidadezinha no interior do Brasil, no séc. XVIII. Em compensação você tem exemplos de grande florescimento econômico sem ter o cultural. É claro que sem riqueza nenhuma você não constrói igrejas; você não pode produzir livros se não tiver recursos; mas você pode ter os recursos e não produzir. Todo mundo sabe que a criação artística é individual. Você pode até trabalhar em equipe, mas é uma soma de individualidades criadoras. Não existe a criação coletiva por si mesma. Então, o que importa, é que agora um poeta, um garoto de 17 anos, esteja lá no interior do Rio Grande Sul, ou de Pernambuco, fazendo uma grande poesia que nós ainda não conhecemos.
Weydson — Você acha que hoje ainda é preciso que esses novos talentos venham para o Rio de janeiro para terem suas obras reconhecidas?
Gullar — É claro que, onde ele estiver, ele terá que se manifestar, que se expor ao público, do contrário ele não será conhecido. Mas eu acho que no Brasil de hoje não há mais aquela necessidade de vir para o Rio de Janeiro para ser reconhecido. Há vários exemplos de artistas e escritores que vivem em seus estados e são reconhecidos. É claro que o Rio de janeiro e São Paulo continuam a ter uma capacidade de repercussão maior; sobretudo o Rio. Aqui essa capacidade é até maior do que em São Paulo. Isso faz parte da história brasileira. Entretanto, o grande escritor, o jovem poeta não precisa morar no Rio de janeiro. O que acontece é que, como hoje não há crítica literária, há uma dificuldade muito grande pra tudo que é escritor e poeta, more ele no Rio ou não. A crítica literária acabou, não existe mais.
Texto de Luiz Eduardo Guimarães
Postado por Flávia Pereira