quinta-feira, 16 de junho de 2011

Entrevista do jornalista Zuenir Ventura sobre Chico Mendes


Zuenir Ventura mergulha na alma de Chico Mendes, diz que pessoas exemplares melhoram o Brasil e mostra que precisamos aprender com as nossas próprias diferenças .

Em seu novo livro, CHICO MENDES: CRIME E CASTIGO (Companhia das Letras), você diz que já tinha mais de trinta anos de carreira quando chegou a Rio Branco, sem saber direito quem era aquele fascinante personagem. Em que aspectos o personagem Chico Mendes é mais fascinante para você?
O que mais me fascinou foi a revelação, foi a surpresa de descobrir um personagem tão rico e tão complexo . Na época, já tinha ouvido falar do Chico Mendes, sabia que ele era reconhecido no exterior, mas não avaliava a sua verdadeira importância. Na correria de redação, de fato, a gente não mensurava essa importância. Então fui ao Acre, para fazer a série de reportagens, sem muita informação sobre o Chico. Ele foi um herói pós-moderno, um cosmopolita, um homem que vivia com um pé no mato e outro em Nova York. Suas idéias permanecem vivas até hoje e se desdobram. Isso é muito raro. E eu voltei ao Acre 15 anos depois do assassinato, para rever o estado e analisar os fios da história. Na realidade, só depois que o Chico morreu, aos 44 anos, foi que o Brasil descobriu que havia perdido algo que tanto custa a produzir: um verdadeiro líder.
Acima de tudo, o que torna alguém um verdadeiro líder?
Ninguém nunca tinha me perguntado isso. Vou refletir depois... Bem, mas eu acho que o verdadeiro líder é alguém que tem um carisma, que tem um magnetismo, que tem uma energia...
Que tem uma força?
Sim, o líder tem uma força, ele tem um conjunto de características que mobiliza as pessoas. Mas não basta que um líder tenha força, não basta que ele tenha energia, não basta que ele tenha magnetismo. Um verdadeiro líder tem que ter idéias, tem que ter convicções, ele tem que ter uma causa, um pensamento, uma bandeira para acenar aos seus liderados. É claro que liderança não é sinônimo de virtude. Há líderes do bem e líderes do mal. Nem precisamos citar os maus líderes da História, que cometeram tantas atrocidades. Quero falar evidentemente sobre o líder que encarna virtudes, que encarna a preocupação com o outro, a vontade de melhorar a sua comunidade, o seu país, o mundo, a vontade de melhorar a si mesmo, a vontade de melhorar as pessoas. Além de tudo isso, o verdadeiro líder tem que ter um desejo de multiplicar os seus conhecimentos, as suas idéias, os seus ideais. Só que, no livro, tomei muito cuidado de não endeusar o Chico Mendes.
Essa é uma das grandes qualidades do seu livro tão primoroso. Em nenhum momento você mitificou o Chico, apesar de toda a sua admiração por ele. Em vez disso, você mergulhou na alma, no lado mais humano do ambientalista, do líder sindical, do personagem. Você mostra, por exemplo, o lado machista do Chico Mendes no casamento...
Exatamente. Quando soube vagamente que ele tinha tido uma mulher, um caso, uma relação meio obscura na vida dele, logo comecei a fuçar isso. E algumas pessoas me criticaram, me disseram que eu ia acabar denegrindo a imagem do Chico. E eu reagia dizendo: “Não quero denegrir a imagem do Chico. Só quero descobrir o seu lado mais humano, com todas as suas fragilidades, com todos os seus desejos, com todas as suas vulnerabilidades.” Mas é claro que, se botarmos na balança, vamos ver que todas as suas qualidades superam de longe os seus defeitos. E acho que mostrar os defeitos de um personagem valoriza as suas próprias qualidades.
A morte do Chico Mendes foi uma das mais anunciadas de toda a História mundial. Ele avisou a muitas pessoas que estava sendo ameaçado de morte, que ia ser assassinado, mas ninguém lhe deu ouvidos. O que mais impressiona você nessa questão?
Não conheci o Chico pessoalmente. Mas sei que ele gostava muito de escrever. Chico foi analfabeto até os 20 anos de idade. E depois que aprendeu ele não parou mais de escrever, principalmente cartas. Na época não tinha esse negócio de e-mail. Imagina o Chico hoje podendo mandar e-mails para o mundo todo? Mas a realidade é que uma ameaça de morte é uma das coisas mais perversas que existem. Se alguém diz que está sendo ameaçado de morte, geralmente não é levado muito a sério, geralmente é visto como paranóico. Muita gente achava que aquilo era uma paranóia do Chico. E o Chico escreveu para o governador, para o presidente da república, para a polícia federal, para muita gente. O Chico acertou o mês em que ia morrer, em dezembro. E talvez uma das coisas que mais me impressionem nisso tudo é o seguinte: se o Chico tinha tanta certeza de que ia morrer, por que ele não deixava o Acre?
Você já disse que, se o Chico acenasse para qualquer país, seria bem recebido na mesma hora...
Sim, ele poderia ir para outro país, poderia ir para São Paulo, poderia ir para o Rio, poderia sair do Acre, se quisesse. Mas foi o que ele disse a uma amiga: “Se eu for embora, vou só adiar a minha morte.” Na realidade, ele não saiu do Acre porque a militância era a sua própria vida. Acho que ele não conseguiria viver exilado, longe dos seringueiros, longe da floresta, longe da sua terra. Mas o Chico, que tinha tanta capacidade de profetizar certos fatos, errou ao dizer que a sua morte seria em vão. Ainda existe uma discussão sobre o que seria hoje da Amazônia, se o Chico tivesse escapado da tocaia, sobre o que seria do Chico, se ele estivesse vivo. Essa discussão não tem resposta. Mas a causa dele avançou muito. O país evoluiu muito, a partir das idéias do Chico Mendes.
No livro, você relata como o jagunço Darci Alves Pereira assassinou Chico Mendes com uma espingarda de cano longo: “Acostumado a caçar, principalmente onça, ele confessaria depois que atirou como quem atira numa caça, porque não dá tempo de mirar. Será que, na pressa de caçar, as pessoas geralmente têm olhado pouco para as outras, têm olhado pouco para o mundo, têm olhado pouco para elas mesmas?
É uma bela observação... Não tinha pensado nessa metáfora. Vivemos num mundo onde parece que não existe passado, onde parece que não existe futuro. É como se só houvesse presente, é como se só o presente interessasse. E esse presente é todo descartável. Em geral, as pessoas não jogam fora só produtos, mas também idéias, sentimentos, possibilidades, tudo o que você imaginar. Numa grande cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, o pobre ganha invisibilidade. Passamos por ele e fazemos questão de não vê-lo, de não mirá-lo. Porque a visão é desagradável, a visão nos incomoda. E aí passamos a mirar as pessoas...
De onde será que vem a nossa falta de tempo para mirar?
Sabe, o verbo mirar tem uma conotação interessante. O chá do Santo Daime produz em quem o toma o que eles chamam de miração. E a miração está muito ligada ao olhar, à imaginação, a uma visão fantástica das coisas. Eu acho que essa falta de tempo para mirar é uma conseqüência da sociedade do eu. Hoje em dia, cada vez mais, tudo é virtual. Vivemos realmente numa sociedade egocêntrica.
Você desce de elevador e fica torcendo para não entrar ninguém, para não ter que puxar conversa?
É, é isso mesmo, as pessoas mal se olham no mesmo condomínio, no mesmo corredor. Praticamente não existe mais relação entre vizinhos.
No livro CIDADE PARTIDA, você fala sobre a importância que as pessoas nas favelas ainda dão aos seus vizinhos.
Exatamente. Na favela existe um sentido de vizinhança e de solidariedade que nós perdemos aqui. As pessoas se ajudam o tempo todo. A moça que já tinha cinco pessoas morando num barraco mínimo abriga cinco da casa vizinha que desabou num temporal. E a gente aqui morre de medo de ser testemunha de algum acidente, para não se aborrecer, para não se chatear. De fato, precisamos mirar mais para os outros, não só por interesse. Afinal, na sociedade atual, as pessoas geralmente só miram para quem interessa a elas de alguma forma.
A mirada precisa de gratuidade?
Sim, precisamos mirar também pelo prazer do encontro, pela troca de afetos, pelo prazer da convivência, pela possibilidade de aprender com as próprias diferenças.
Pensamento seu: “A experiência profissional e existencial que resultou nesta série de reportagens me ensinou muito do Brasil, do Acre e de como, até já velho, a gente aprende no jornalismo (...). Não existe repórter pronto. Ele é um processo, uma construção, uma obra imperfeita, inacabada.” Repórter que se acha pronto, na realidade, está acabado?
Ele está acabado, mesmo que tenha 22 anos. O jornalismo é uma profissão que nos desperta muita soberba, porque temos o poder de ser mediadores entre os fatos, os leitores, os ouvintes, os telespectadores. Cansei de quebrar a cara por não acreditar no acaso. O imprevisto, a surpresa e o acaso são fundamentais no jornalismo. Hoje eu acredito mais no acaso do que na intencionalidade. É claro que o acaso não dispensa a técnica, a ética, a inspiração...
Um bom jornalista também precisa saber o que fazer com o acaso?
Exatamente, você precisa saber o que fazer com o acaso. O jornalista tem que ficar muito atento, tem que renovar os olhos...
Ele precisa renovar a mirada?
Temos que renovar a mirada sempre. Senão você não enxerga as mudanças. Quando converso com estudantes e jovens jornalistas e me pedem um conselho, digo que não dou, porque quem dá conselho é velho. Mas digo para eles prestarem atenção ao verdadeiro sentido da palavra humildade. Essa palavra se tornou pejorativa.
Humildade, em geral, virou sinônimo de submissão, de cabeça baixa, de olho no chão?
Essa conotação ainda existe muito. Mas humildade, acima de tudo, é estar aberto para aprender com quem quer que seja, é reconhecer que não sabe, é entrar em campo respeitando todo mundo...
Jornalista não pode entrar em campo de salto alto?
Exatamente. Está aí o exemplo dos jovens da seleção brasileira que entraram de salto alto e perderam a vaga para as Olimpíadas.
O jornalista Fernando Calazans, do jornal O Globo, critica os jovens jogadores de futebol que dizem que não precisam provar mais nada a ninguém. Ser bem-sucedido num jogo, num campeonato, numa matéria, numa entrevista, não significa que você será bem-sucedido sempre, certo?
Claro, claro. A experiência não é tudo. O talento é muito importante. Mas é aquela história, o novo nasce do velho. Só que nem todo mundo entende isso.
Nas redações isso ainda acontece muito, você concorda?
Concordo. Acho que se eu tivesse ficado trabalhando em redação, sem ter escrito os meus livros, sem ter me tornado colunista, provavelmente chegaria um momento em que as pessoas se perguntariam: “O que a gente faz com o Zuenir?”
Com a série O Acre de Chico Mendes, você conquistou os prêmios Esso de Jornalismo e Vladimir Herzog de Reportagem. Além dessas conquistas, você diz que o maior de todos os prêmios foi “conhecer a riqueza de uma terra e o caráter de uma brava gente que Chico Mendes chamava de Povos da Floresta, que ele defendeu até a morte.” O que mais puxava o Chico para defender esses povos da floresta?
Ao contrário do que muita gente pensava, o Chico não queria transformar a floresta num santuário. Ele sabia que o seringueiro usa a floresta, que o índio usa a floresta, que o caboclo das matas usa a floresta... O Chico era contra a devastação. Ele queria transformar a floresta em algo sustentável, que fosse rentável e que fosse conservada ao mesmo tempo, que fosse explorada racionalmente. A relação do Chico com a floresta era uma relação de amor. E intuiu, como ninguém, o quanto de riqueza a floresta poderia dar de sustento a todo mundo e o quanto isso poderia despertar o interesse de outros países. Hoje se fala muito em biodiversidade, que são as possibilidades medicinais de cada árvore, de cada erva, de cada planta, de cada organismo da floresta que atuam na cura e na prevenção de tantas doenças. Mas o Chico já falava de tudo isso há muito tempo. O Chico Mendes escreveu a questão ambiental na agenda do mundo.

Você se envolveu tanto na série de reportagens que chegou a abrigar na sua casa, no Rio, o menino Genésio, principal testemunha do caso Chico Mendes. Esse menino, que na época tinha 13 ou 14 anos, achava que poderia se disfarçar dos criminosos simplesmente oxigenando o cabelo. Ele tinha sido criado na fazenda dos assassinos. Toda vez que voltava a Xapuri, você ficava comovido quando entrevistava o Genésio. Um dia, quando perguntou qual era o sonho desse garoto, ele lhe disse que era sair de lá. Ele queria ir embora de Xapuri, queria ir estudar em Rio Branco. Mas você acabou conseguindo levá-lo para o Rio. Nesse tipo de situação limite, o que mais impulsiona você a tomar uma atitude?
Esse garoto foi o meu primeiro entrevistado na série de reportagens. Quando o conheci, ele mal me respondia, era monossilábico. E acabei descobrindo que ele realmente era uma testemunha fundamental do assassinato. Então, também fui observando que ele não teria segurança nenhuma vivendo em Xapuri. Foi quando o Genésio me disse que o seu sonho era estudar em Rio Branco. Consegui levá-lo para lá, com autorização e tudo mais. Mas no quartel de Rio Branco, o coronel Roberto (uma figura maravilhosa) me disse depois que até mesmo lá dentro o menino não estaria em segurança. Dessa forma, eu o trouxe para minha casa, aqui no Rio. Ele veio sob a minha tutela, com toda a documentação.

Você não teve medo do que poderia acontecer mesmo no Rio?
Não, olha que coisa, nem pensei nisso. É que na época o crime organizado não tinha tantos tentáculos no Brasil. Na época, se alguém mandasse um jagunço do Acre para o Rio, no meio da cidade, ele morreria no trânsito. Esses tentáculos do crime começaram a aparecer depois que o tráfico de drogas ganhou força.
Aliás, você já disse que entre conseguir um furo jornalístico e salvar uma vida, prefere salvar uma vida, mas que também não despreza nem julga, por exemplo, a atitude de um fotógrafo que registra a morte, em vez de tentar evitá-la. Como você mesmo ressalta, são situações limites que exigem decisões muito pessoais. Você já se surpreendeu com as suas próprias decisões pessoais diante de situações extremas?
Vou dar um exemplo: em nenhum momento eu usei o Genésio. Não fiz nenhuma entrevista exclusiva com o menino enquanto ele estava sob a minha tutela. A imprensa toda do Brasil queria entrevistá-lo. Mas o juiz Adair Longuini me pediu que ele não desse entrevistas naquele momento. Afinal, o Genésio era testemunha de um assassinato. E eu também achava que o Longuini estava completamente certo. Gosto de conseguir um furo jornalistico. Sou condicionado por isso. Só que nada vale nem de longe o risco de perder uma vida.
Numa entrevista ao canal Globonews, você disse que há três personagens que lhe impressionam até hoje: o menino Genésio, o Chico Mendes, logicamente, e o juiz Adair Longuini, que comandou o julgamento e a condenação dos assassinos. O que esses personagens têm em comum?
Eles têm em comum o desprendimento. Os três tiveram uma coragem cívica e física. A história do Acre é muito bonita, é uma história de coragem, de independência, de autonomia, de bravura, de enfrentamento. Mas tudo isso só existe graças às pessoas, graças a quem dá beleza ao estado. O Jorge Viana, atual governador do Acre, é uma pessoa fantástica, um jovem tão legal, tão sério, tão cheio de disposição para fazer o seu estado melhorar. E ele era um menino quando eu estive lá pela primeira vez.
A condenação dos assassinos de Chico Mendes, segundo você, foi uma apoteose cívica. De que forma, acima de tudo, uma apoteose cívica contribui para melhorar um país? Será que um país só melhora realmente dessa forma, com apoteoses cívicas?
Não, um país não melhora só com apoteoses. O que melhora um país, acima de tudo, são as pessoas exemplares. Conheci dois meninos, dois estudantes de Direito, que na época foram assistir ao julgamento dos assassinos do Chico Mendes. Pedro Francisco da Silva e Jair Fernandes foram assistir ao juiz Adair, porque eles queriam seguir os seus passos. Pois bem, esses dois rapazes, anos depois, tiveram um papel fundamental no desmonte do crime organizado no Acre. Eles assumiram a Justiça Federal do Acre. Eles foram fundamentais na condenação à cadeia do então deputado Hildebrando Pascoal, que ficou famoso no estado na década de 90 pelo poder que detinha e pela crueldade: cortava as suas vítimas ainda vivas com uma motosserra. Pois bem, esses dois rapazes advogados são exemplares. São pessoas assim que mudam um país. O Adair foi um exemplo para eles, foi um exemplo para o Brasil. E certamente eles vão ser exemplos para outros jovens, que também seguirão os seus passos.
No livro, você escreve: “Um dos grandes mistérios dessa história (e essa é uma impressão preconceituosa) é imaginar como no meio da floresta (onde só nasce mato e bicho) pode existir um sujeito tão extraordinário.” Quando escreveu CIDADE PARTIDA, você contou, numa entrevista ao jornalista Julio Gama, que ficou supreendido quando encontrou um sociólogo super inteligente e uma menina muito linda, ambos morando na Favela de Vigário Geral, onde em geral, segundo você, as pessoas esperam encontrar o feio e o burro. Nessa mesma entrevista, publicada no extinto jornal Lector, você também conta que logo depois ficou ainda mais surpreendido com esse estereótipo que havia dentro do seu próprio pensamento, dentro da sua própria visão. Afinal, beleza e sabedoria não tem geografia?
Exatamente. Você observou bem esse paralelo entre os meus dois livros. Sabe, um amigo me disse que eu me expus muito assumindo os meus próprios preconceitos...
Mas nem todo preconceito é sinônimo de perversidade?
Pois é, eu concordo. Mas a realidade é que esses preconceitos passam mesmo pela nossa cabeça. Não é um preconceito só meu, é um preconceito de classe. Não conseguimos imaginar que no meio do mato, no meio da floresta, possa existir um homem extraordinário. Não conseguimos imaginar que uma menina bonita possa existir na favela. É como diz o Caetano, numa música: “Narciso acha feio o que não é espelho.” Aceitar a diferença é uma questão cada vez mais fundamental no mundo. É uma questão de olhar, é uma questão de mirar.
É uma questão de mirar e se aproximar?
Sim, mirar aproxima a gente dos outros.
Texto de: Camila Proença
Postado por Flávia Pereira

Nenhum comentário:

Postar um comentário